SILÊNCIO DEMAIS?

O dilema da Ferrari para sobreviver na era dos carros elétricos

MARTIN KATLER/UNSPLASH

Veículo da Ferrari em ensaio fotográfico

Veículo da Ferrari em ensaio fotográfico; Ceballos detalha novo dilema da montadora de luxo

Publicado em 21/10/2025 - 12h00

A Ferrari vive um dos capítulos mais desafiadores de sua história: manter o desejo e a exclusividade da marca enquanto o mundo exige carros sustentáveis e eletrificados. Em meio à transição global para veículos elétricos, a empresa italiana tenta equilibrar tradição e inovação, mas o mercado reagiu com desconfiança.

Após apresentar projeções consideradas conservadoras, as ações da Ferrari caíram cerca de 15% em outubro de 2025, apagando mais de US$ 10 bilhões em valor de mercado. Por trás dessa queda, há uma questão muito maior do que números: como preservar o mito de uma marca construída no som, na emoção e na experiência sensorial em uma era que valoriza eficiência e silêncio?

Durante décadas, a Ferrari foi sinônimo de desejo aspiracional. Comprar um Ferrari nunca foi apenas sobre velocidade, mas sobre status, pertencimento e emoção. O cliente Ferrari não adquire apenas um veículo, ele compra uma extensão do próprio ego. É o ritual de receber a chave, o som inconfundível do motor, o cheiro do couro artesanal e o olhar admirado de quem o vê passar. Cada detalhe foi meticulosamente projetado para construir uma experiência que transcende o produto.

É exatamente essa experiência que agora está em xeque. A eletrificação ameaça diluir a essência daquilo que sempre fez a Ferrari ser… Ferrari. Um carro elétrico de luxo é eficiente, mas também silencioso, previsível e limpo: três adjetivos que raramente se associam à emoção de dirigir uma máquina feita em Maranello. O desafio da marca não é apenas técnico, é existencial: como criar desejo em um mundo onde a potência é medida em watts, e não em cavalos?

No Capital Markets Day de 2025, a empresa revelou previsões que decepcionaram investidores e fãs. A Ferrari agora projeta receitas de € 9 bilhões até 2030, bem abaixo do que o mercado esperava, e reduziu sua meta de eletrificação, apenas 20% dos carros serão totalmente elétricos até o fim da década, metade da promessa anterior.

O tom de cautela fez o mercado reagir: grandes bancos, como o UBS, rebaixaram o preço-alvo das ações para US$ 529, apontando que a marca segue sólida, mas precisa demonstrar mais ousadia estratégica. A queda na bolsa refletiu uma dúvida que começa a crescer: será que a Ferrari está perdendo o encantamento que sempre a diferenciou?

O mercado automotivo premium mudou. Marcas como Porsche, BMW e Mercedes-Benz já transformaram a eletrificação automotiva em símbolo de luxo moderno, associando inovação à experiência de dirigir. Enquanto isso, a Ferrari parece hesitar entre o passado e o futuro — e, no universo das marcas de desejo, hesitação custa caro.

O primeiro supercarro elétrico da Ferrari, previsto para 2026, é tratado como um projeto de redenção. A empresa promete que o modelo trará uma "alma sonora e emocional", simulando a vibração e o som do motor a combustão. Não se trata apenas de desempenho, mas de preservar a emoção. Em um mercado dominado por software, a Ferrari aposta que ainda é possível vender sensação e não apenas tecnologia.

Mas talvez o maior dilema esteja no relacionamento com o cliente. O consumidor Ferrari é leal, mas também exigente. Ele quer inovação sem abrir mão da tradição e está acostumado a uma experiência de compra personalizada, quase artesanal. O risco é que a eletrificação quebre essa ponte emocional, transformando a marca em algo genérico, um luxo tecnológico sem alma.

Esse mesmo dilema ecoa em toda a indústria de bens de alto valor: o risco de se tornar menos desejada. O luxo depende do irracional, do simbólico, do sensorial. E é justamente esse território que a Ferrari domina como ninguém, mas agora precisa traduzir para um novo idioma energético.

No fundo, a queda das ações é apenas um sintoma de algo mais profundo: o desafio de reinventar o desejo na era elétrica. A Ferrari não está apenas eletrificando carros, está tentando eletrificar emoções.

E o resultado disso definirá o futuro de uma das marcas mais poderosas da história. Porque, no fim, o som que sempre moveu a Ferrari nunca foi apenas o dos motores, foi o som do coração acelerado de quem sonha em dirigir um.


*As opiniões do colunista não refletem, necessariamente, o posicionamento do Economia Real.

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